Por Clóvis
Manfrini Souto Calado
(Publicado inicialmente pelo http://www.novacultura.info/)
Em 1989, no auge da derrocada dos países
socialistas que – erradamente – caminhavam na estrada esburacada do
revisionismo, as tropas do Vietnã finalizam a ocupação dez anos antes e que pôs
fim a uma das experiências mais independentes e radicais da construção do
socialismo: a República Democrática do Kampuchea.
No primeiro século até o século V de nossa Era, o Camboja (Kampuchea na
língua khmer) fazia parte do grande Estado de Fu-nan. A partir do século VI o
reino de Chen-la (conhecido com o a terra dos cambuja) sucede o antigo Estado.
O reino de Angkor surge por volta do ano 800 e existirá até 1450. Durante o
desenvolvimento desse período Angkor várias guerras por disputas territoriais
existiram. Ao Norte com o reino de Sião (atual Tailândia) e ao sul com o
Vietnã. Essas guerras foram mais cruentas com a chegada do século XIX e a
entrada de portugueses e holandeses nos conflitos. As disputas coloniais
estavam em jogo.
O estágio colonial francês tem início em 1863, graças a acordos do
monarca cambojano Norodom com o Governo da França. Em 1887, o Camboja passa da
condição de protetorado da França para ser membro da União Indochina (uma
grande colônia francesa que abrigava, além do Camboja, Vietnã, Laos e
Tailândia). A independência do Camboja se dará somente em 1953 depois de
décadas de reivindicações nacionalistas. Norodom Sihanouk abdica o trono em
favor do pai (Norodom Suramarit) e funda o Partido Sangkum (nacionalista). O
Sangkum elege toda a bancada parlamentar nas primeiras eleições
pós-independência e – após a morte do pai (em 1960), Sihanouk se torna chefe de
Estado e de Governo (sem reivindicar o título de rei). Sihanouk é derrubado por
um Golpe patrocinado pelos Estados Unidos em 1970.
Nas lutas pela independência, o Partido Revolucionário do Povo Khmer
(comunista), que surge no começo da década de 1950 após a divisão do Partido
Comunista da Indochina em partidos regionais (Camboja, Vietnã e Laos), é o que
mais se destaca. Nas eleições de 1955, já que estava clandestino o PRPK, os
comunistas cambojanos fundam uma legenda legal (Krom Pracheachon) para
participar do processo. O partido recebe 4% dos votos, embora não consiga
nenhuma cadeira no parlamento todo dominado pelo Sangkum. Perseguidos por
Sihanouk (que apelidou de forma pejorativa o povo khmer que lutava bravamente
de “khmer vermelho”) o PRPK racha logo após as eleições. Dois grupos, o
“urbano” (liderado por Tou Samouth) e o “rural” (liderado por Sieu Heng),
passam a promover conflitos internos. A tendência “urbana” (apoiada pelo
Partido Comunista do Vietnã) defendia a posição de apoio ao que chamavam de
“príncipe progressista” (Sihanouk); a “rural”, ao contrário, adotava a posição
de guerra popular para derrotar o que chamavam de “senhor feudal” o mesmo
príncipe. O líder Sieu Heng passa para o lado inimigo e colabora com a
repressão, destruindo cerca de 90% da organização no campo. Apenas algumas
centenas de comunistas ligados a facção “rural” permanecem atuando na capital
Phnom Penh.
Um grupo de estudantes comunistas cambojanos, que viviam na França, já
se organizavam. Esses comunistas ainda não tinham muitas ligações com o confuso
PRPK e em setembro de 1960 (após anos de clandestinidade) organizaram um
Congresso e fundaram o Partido dos Trabalhadores do Kampuchea. Dos 21 líderes
que participaram desse Congresso de formação, 14 faziam parte da antiga facção
“rural” e eram profundamente antivietnamitas. Formou-se um Comitê Central e Tou
Samouth torna-se secretário-geral. Pol Pot (fora um dos líderes estudantis que
formaram o Círculo Marxista na França) torna-se o terceiro nome no Partido e
fazia parte da linha “rural”. Em 1962, após o assassinato de Samouth pelo
Governo cambojano, Pol Pot assume o poder e é eleito secretário-geral durante o
Segundo Congresso do PTK.
O novo dirigente deixa a capital e conduz cerca de 100 militantes para o
campo, na Província de Ratanakiri (noroeste do país), formando uma base
insurgente. A maioria dos dirigentes do PTK desertou antes e foram presos pelo
regime de Sihanouk. Em 1965, Pol Pot viaja e passa o ano recebendo formação no
Vietnã do Norte (socialista) e na China. O Governo chinês mantinha boas
relações com Sihanouk, no entanto fez segredo dessa “visita” de Pot para
treinamentos. Entre 1967 tem início a guerra popular comandada pelo ainda PTK,
com poucos êxitos. A escalada nacional de guerra civil se daria somente a
partir de 1968. As forças guerrilheiras eram denominadas de Exército
Revolucionário do Kampuchea (ERK). Em 1971 o PTK muda de nome e surge o Partido
Comunista do Kampuchea. A nova denominação ficou em segredo entre os dirigentes
comunistas kampucheanos e a China Popular.
Em 18 de março de 1970, um Golpe patrocinado pelos Estados Unidos
derruba o Governo do príncipe Sihanouk e uma Junta Militar (liderada por Lon
Nol) assume o poder. A União Soviética imediatamente reconhece o novo Governo.
Antes desse Golpe, os Estados Unidos – que estavam massacrando os vietnamitas
numa Guerra assassina – já entravam em território cambojano para combater as
tropas do Vietnã do Norte.
Os milhões de mortos cambojanos
A justificativa para a invasão do Kampuchea em 1979
pelos invasores vietnamitas foi o “genocídio promovido pelos khmers vermelhos”.
Esta falsificação histórica é mais uma das muitas que pontuam a história
escrita pela burguesia para tentar manchar as revoluções populares e
socialistas ao longo do tempo. Desde 1871 (com a Comuna de Paris) que a
burguesia calunia socialistas e comunistas e lhes pinta de assassinos e
genocidas, quando – na verdade - os assassinos e genocidas da humanidade ao
longo do tempo são as classes dominantes. Nestas contas absurdas, feitas muitas
vezes em redações de jornais da burguesia, Lênin e Stálin “mataram” 70 milhões
e Mao ultrapassou a casa dos 100 milhões. Cifras absurdas que deixam os mais
atentos desconfiados. No caso da União Soviética até hoje se propaga a farsa
dos “milhões de soviéticos mortos por Stálin”. Tudo não passa de uma mera visão
reduzida da História e uma maneira de manipular as massas através da
contrapropaganda e colocá-las contra o socialismo.
No Camboja, esta matança realmente existiu, e foram
– provavelmente – mais de 1 milhão de cambojanos assassinados. No entanto, os
assassinos não foram camponeses pobres que empunham fuzis e viviam com
econômicas rações de arroz para sobreviver e uma vida de total entrega à causa
revolucionária. Os assassinos do povo cambojano (a maioria camponeses e
trabalhadores pobres) foram os agressores ianques. O Camboja foi – até hoje – o
país mais bombardeado da História. Estes criminosos bombardeios, falsamente
justificados para conter o avanço das tropas do Vietnã do Norte que
atravessavam a fronteira cambojana, tiveram início em 18 de março de 1969. Esta
primeira fase de agressão matou cerca de 1 milhão de cambojanos (a maioria
mulheres e crianças) e deixou mais de dois milhões de cambojanos refugiados
(muitos desses morreram em consequências da fome e de sequelas das bombas
jogadas pelos assassinos ianques).
Ainda em 1969, antes da derrubada do Governo Sihanouk e mesmo com sérias
divergências pelo caráter burguês do príncipe, o PTK inicia conversações com
forças antiimperialistas e funda a Frente Nacional de Libertação (liderada por
Kieu Shampan e Pol Pot, do PTK e pelo príncipe Sinahouk que após o Golpe passa
a viver na China e auxilia a guerra popular agindo como relações exteriores,
conseguindo recursos e armas para o movimento).
Durante os anos de luta guerrilheira, Kieu Shampan organiza uma
Conferência com os partidos comunistas do Laos, Vietnã do Norte, FLN do Vietnã
do Sul (vietcongs) e FNL do Camboja. Nesta Conferência é denunciado o genocídio
cometido pelos ianques contra o povo cambojano. É daí que os inimigos do
socialismo se apoderaram das informações sobre o assassino em massa e mudam as
autorias dos crimes, passando a culpar membros do PTK. A falsificação histórica
estava feita. A partir dessa Conferência o Ocidente passa a atribuir ao
“assassino Pol Pot” os mais de “três milhões de mortos” do Camboja. Essa versão
fantasiosa ganhou popularidade após o livro-reportagem do jornalista ianque (do
The New York Times) Sidney Schanberg. O livro A Morte e Vida de Dith Pran,
baseado em depoimentos de seu amigo e médico cambojano Dith Pran. Um depoimento
um tanto suspeito, já que o médico consegue “fugir” do Kampuchea e chegar aos
Estados Unidos onde seria um famoso repórter do TNYT. Hoje é um dos ativistas
mais anticomunistas que existem e faz palestras para relembrar o “genocídio
cometido pelos marxistas cambojanos”. Pran não passa de um agente muito bem
pago (diga-se de passagem) pelo imperialismo norte-americano.
Os revolucionários da FNL chegam a Phnom Penh em 17 de abril de 1975 e o
Exército do Governo títere de Lon Nol se rende. Antes de deixar a capital, as
forças anticomunistas e revisionistas destroem documentos que comprovam mais
crimes contra o povo cambojano cometidos por Lon Nol e pelos Estados Unidos,
crimes silenciados pelos embaixadores da União Soviética e da RDA.
É fundada a República Democrática do Kampuchea.
Uma revolução profunda e original
Muitos marxista-leninistas, ainda hoje, não tem boa vontade em
compreender a experiência socialista do Kampuchea Democrático. Ignoram os
aspectos culturais, sociais e econômicos e – principalmente - o contexto
histórico da luta antiimperialista e socialista liderada pelo Partido Comunista
do Kampuchea. A decisão do PCK foi de total independência e se posicionou
contra qualquer forma de copiar modelos de outras experiências revolucionárias
e também de não depender somente da ajuda estrangeira era uma das regras da
direção comunista. Tinham, é fato, se baseado na forma de luta da guerra
popular, mas, sem deixar de lado as características particulares do Camboja.
As decisões que causam certos preconceitos (mesmo
entre marxista-leninistas) são profundas e radicais, como por exemplo, a
abolição do dinheiro (aliás, um fetiche segundo Marx) e o deslocamento da
maioria da população urbana para o campo. No caso desta última medida, o novo
Governo de construção socialista não tinha condições materiais para – de
imediato – reconstruir as cidades que foram duramente bombardeadas pelos
norte-americanos e decidiu que a maioria do povo seria deslocado para regiões
rurais onde poderiam ter mais segurança no caso de novos ataques ianques. Em
1975, mesmo com o fim da Guerra do Vietnã, quem garantia que os Estados Unidos
não voltariam a atacar a região utilizando inclusive artefatos nucleares? Este
era o temor da liderança comunista. Em 1978 o jornal sueco Dagem Nyveter, em
uma longa reportagem, afirmou que “em apenas três anos após o fim da guerra, a
nação estava se alimentando e exportando o excedente de arroz”. Assim, o plano
de reconstruir o país arrasado pelas bombas norte-americanas estava dando certo
e o país já se recuperava da fome que o povo cambojano foi submetido desde o
início das agressões do imperialismo. Na questão da abolição do dinheiro, foram
criados bônus que correspondiam ao tempo de trabalho realizado para trocas de
víveres, serviços e vestimentas nas cooperativas estatais. Também foram
construídas milhares de novas habitações para o povo, confortáveis, diferentes
das antigas construções cobertas de palha.
Outro interessante depoimento é do jornalista norte-americano Malcom
Caldwell que esteve no país em dezembro de 1978 e, após investigar pessoalmente
a experiência socialista kampucheana, teceu vários elogios sobre o que se
passava de fato lá. Misteriosamente, este jornalista foi assassinado por
agentes ligados ao Vietnã (consequentemente ligados à agentes soviéticos). O
jornalista foi testemunha da experiência totalmente nova que estava sendo posta
em prática naquele momento.
A invasão vietnamita
O Vietnã, após a independência da Indochina, se achou no direito de ser
o legitimo herdeiro da colônia francesa e passou a provocar atritos de
fronteiras com o Camboja. Quando o PCK conseguiu formar o Governo
revolucionário, a independência e a decisão dos dirigentes do Kampuchea
Democrático em não aceitar intervenções e modelos impostos por outras nações
socialistas causou um mal-estar no Vietnã Socialista. É bom destacar que neste
período, 1975, as tensões entre URSS e China Popular ainda eram altas. O
socialismo na URSS estava atravessando uma profunda crise (econômica e
ideológica), instalada após a subida ao poder do revisionista e quinta-coluna
Nikita Kruschev e agravada com a chegada do também revisionista Leonid Brejnev.
A China, com Mao ainda no Poder, apoiava a luta khmer e oferecia ajuda militar
aos kampucheanos para resistir. Mesmo com todas as dificuldades de um país
atrasado economicamente e arrasado pelas milhões de bombas imperialistas
jogadas em seu território o povo kampucheano em sua imensa maioria apoiava o
novo regime.
Em fins de 1978 o Vietnã patrocinou a criação de um movimento de “resistência”,
a Frente de Libertação Nacional. Na verdade, esta “resistência” ao PCK era
formada por agentes de Hanói com ajuda da URSS e da República Democrática
Alemã. A invasão ao território kampucheano, após meses de provocação nas
fronteiras Kampuchea/Vietnã, se deu em 1º de janeiro de 1979. A máquina de
Guerra vietnamita – com tanques soviéticos de última geração e caças Mig 21
(também de fabricação soviética) – não permite ao pequeno e ainda mal equipado
Exército Revolucionário do Kampuchea (ERK) uma resistência efetiva. Sete dias
após o início da invasão vietnamita, a capital Phnom Penh cai e o ERK
(juntamente com o PCK) decide recomeçar uma guerra popular e formar colunas
guerrilheiras em regiões montanhosas na fronteira com a Tailândia. O Vietnã cria
uma República Popular do Camboja e forma um fictício “Partido Comunista do
Camboja”. O país passa a ser dirigido por um ex-dirigente do PCK, Heng Samrin
(ex-oficial de baixa patente do ERK). 200 mil soldados vietnamitas passam a
ocupar oficialmente o Camboja.
Um depoimento esclarecedor sobre essa invasão e sobre os progressos
atingidos pelo Governo do PCK foi dado pelo jornalista sueco Jan Myrdal.
Myrdal, em seu livro “Kampuchea, 1979”, descreve o fim da fome no país, a
reconstrução das ferrovias, o reparo nas comunicações (principalmente
telefonia) e a construção de milhares de casas para a população que antes vivia
em choupanas. O jornalista também fala das escolas que visitou e os vários
livros que viu publicados no país. Segundo Myrdal, qualquer um podia ver esse
progresso.
Em 1980, as forças anti-vietnamitas se unificaram e
formaram um Governo tripartite com Sihanouk presidente e Kieu Samphan como
vice. Esse Governo funcionava desde a China (onde Sihanouk vivia exilado). A
luta durou até a queda do Governo títere vietnamita em 1989. O país muda de
nome mais uma vez em 1993 e restaura a monarquia com a volta de Sihanouk ao
poder (que abdica e passa a seu filho a liderança). O PCK ainda lutava por
volta de meados dos anos de 1990, no entanto, debilitado e perseguido, Pol Pot
é encontrado morto em sua modesta residência no campo após ser preso pelos
próprios companheiros.
A desinformação sobre a experiência socialista no Kampuchea Democrático
ainda é grande. A intelectualidade burguesa exerce uma força gigantesca e
influencia setores da esquerda (muitos marxistas-leninistas inclusive) no
sentido de caluniar Pol Pot e fazer dele um monstro. Erros foram cometidos, sem
nenhuma dúvida, mas, não na dimensão que querem fazer crer os hipócritas e
verdadeiros criminosos que diariamente caluniam sobre o movimento comunista.
Chegará o dia em que a verdade será mostrada às massas e todos estes
caluniadores a serviço da burguesia serão julgados pelo povo.
Referências:
- Chomsky, Noam e Herman, Edward S. Os guardiões da liberdade. Grijalbo
Mondadori.
- Kampuchea
democrática (em www.maoistasbolivianos.blogspot.com.br).
- Enciclopédia Barsa Universal, Volume 4, Editora Planeta, 2009.
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